365
José Bértolo
31’08, Casa do Comum, 22 Fev. 2025
Na origem de 365 está um projecto fotográfico realizado entre 22 de Fevereiro de 2022 e 21 de Fevereiro de 2023. Ao longo de um ano, José Bértolo registou o seu quotidiano com uma máquina compacta, testemunha silenciosa, suficientemente portátil e discreta para viajar no bolso. Na condição de diário visual, 365 é um projecto sobre viver e fotografar (viver para fotografar… fotografar para viver…), e, essencialmente, sobre viver através da fotografia. Acima de tudo, é um calendário íntimo que, por ser um calendário, também foi de toda a gente. A sessão na Casa do Comum apresentará o projecto em formato vídeo.
Viva la Muerte!
Amândio Reis
Quando o 365 entrou em casa, foi um vago susto. Tinha vindo morar connosco este animal novo: um homem, uma máquina, um desejo, coagulados. A partir daquele dia, éramos o J., a Maria, eu, o Bento e o 365. A quimera lançou-se numa valsa trôpega contra os móveis, por entre os pés – no fim do ano, já dançava melhor –, com aquele seu «aspecto de uma dobadoura plana em forma de estrela», e nós fugíamos-lhe, a princípio, para depois corrermos ao seu encontro. Todos engatinhados. Espreitávamos, tentadores, do aro das portas. Começou então a aprendizagem: vivíamos no jardim zoológico. O 365 não veio mudar nada, no fim de contas, mas a sua presença tornou algumas coisas mais visíveis. O dorso eriçado redobrava de realidade quando ele olhava para nós, porque havia uma besta à nossa altura, face a face. Numa história de fantasmas de Henry James (“Os Amigos dos Amigos”), que também passou a ser do Truffaut, sepultado nos veios do 365 juntamente com a Chorona, a Martita, o Black,
o Teddy, a Ladina, o Redish..., o narrador diz de uma personagem: “it was always her thought that her husband was waiting to pounce on her”. To pounce é um dos verbos preferidos do James, e é intraduzível, não por não haver um termo equivalente, mas por a palavra, em si, já ser a curva do salto, o miado e o choque (2022/05/16).
O 365 pula hoje de um dia para o outro, pára, corre. Às vezes pára um pouco mais; não deita âncora em nada nem ninguém. Vídeo: eu vejo. Em casa, gosta de livros, especialmente dos que a Maria estiver a ler: o seu Balzac, Winter Journey, do Araki, Guibert, a estante da poesia, que ela defende com as unhas (2022/02/28). Levando-o à rua, de onde ele tinha vindo, bicho vadio, foi muitas vezes atrás de cartazes, letreiros em que leu as suas premissas, Ser Visto para Ser Lembrado — ou viu o seu nome: Lusifar —, anúncios do desaparecimento de todos os irmãos e irmãs (Kenneth Clark) que logo reconhecia. (Para o J., “animal” não corresponde a uma categorização.) Dentro e fora de casa, fareja frases, retalhos que vai cosendo com o seu texto, urdido em trinta e um minutos e oito segundos ou trezentos e sessenta e cinco dias: words and images are two different animals. São? Comer animais é... estranho. Viva la Muerte!
Dilatação gravitacional do tempo: dizem que o tempo não é todo igual e que passa mais devagar quanto mais perto da fonte de gravidade (2023/01/29). Deve ser por isso que o relógio do 365 regista pequenas oscilações, pela proximidade ou pela distância do seu próprio corpo de engrenagem relativamente ao corpo do mundo, desconjuntado. Como é que ele se move no espaço? Usa patas, pernas, asas sem rosto, amputadas pelo visor. Eis a regra: enquadramento & enxerto. O Bento e a Maria deitados juntos à janela, corpo a corpo. O Sol. O 365 não é uma máquina mnemónica, as suas articulações não são lembranças, são, sim, constatações, verdades fotográficas: a Margarida já não está (2022/03/22); a Maria vestiu-se a rigor para começar a partir (2023/05/01). Como vós, nós não nos lembramos de nada. Assistimos. Neste ponto, manifesta-se a natureza dual do 365: diário e bestiário, efeméride e monstro.
Por favor! Amem a vida! Como cães desconhecidos quando se encontram na rua, curto-circuitando as línguas, o 365, ao deparar com outro animal, reconhece nele o seu aparelho fotográfico: a Ricoh vê a preto-e-branco, calendariza, espanta às vezes de cor; o varano alucina miragens de vidro, baço, morno; a pomba vive em disparo contínuo; a mosca tem quatro mil câmaras; o tigre é só flash; o caracol, de tão introspecto, tornou-se dois; o papagaio fixa o alvo por entre as grades, chama-se Amigo. Animal é o nome
de um corpo. Também é o nome que chama o nosso corpo. Enamorando-se, ele e o 365 escrevem a fantasia das suas imagens, co-autores. O tempo desacelera e o corpo dos dois, um corpo dos dois, cruza lentamente um céu sentimental, viaja em direcção ao centro gravítico, onde as frases convergem (2023/02/22). Viva la Muerte!
Se nas primeiras semanas a nossa reacção era bufar e devolver-lhe carrancas, não demorou que nos habituássemos às suas investidas quotidianas. Passámos a ignorá-lo, a tolerá-lo, a fazer poses diante de um focinho bisbilhoteiro que nos podia surpreender
a qualquer instante. Foi a fase do adestramento e da domesticação. A surpresa, porém, veio depois, quando não encontrámos nenhuma dessas fotografias no cacifo do 365. No lugar delas, há pedaços dos nossos corpos que desconhecíamos, ângulos e beijos tremidamente novos. Esquecemo-nos destes beijos? Não sabíamos que os tínhamos dado. São troféus de uma caça furtiva; e a vida é selvagem, afinal. Este filme é outro;
o meu filme é outro. Mas somos nós, apesar de tudo, mesmo quando somos outra coisa. Percebemos, pois, que as linhas de inscrição do 365 traçam também linhas de escorrência: pegadas e indícios, isto foi, os laivos de tinta nas paredes, o bolor, a água desenhando patas no chão, extraterrestres, a gata preta e os gatos pretos, a cicatriz
no centro do nosso mundo (2023/01/09 & 2023/01/26), uma sutura e uma teia. O 365 opera, fotograficamente, de acordo com dois princípios: a metamorfose dos corpos e a transmigração das almas. Porquê? Lucrécio explica-o muito bem: “porque a imagem de uma coisa tem aspecto e forma semelhante / àquele corpo do qual se diz que fluiu para vaguear, / e estas imagens, como películas desprendidas da superfície / dos corpos das coisas, voam para um e outro lado através dos ares”.
Estas são as sementes do mundo póstumo, feliz, do 365 (Viva la Muerte!), no qual os dias, criados pelo sol, expulsaram os feriados, os astros apagaram a política e a luz passou enfim da esfera humana. É por isso muito significativa a última(?) fotografia. À frente da pintura de um chimpanzé enjaulado, nas imediações do zoo, o J. faz o seu próprio gesto de fechamento, o ponto final, o bater da claquete; mas despersonaliza-se ao mesmo tempo que assina. Alguns dirão: o fotógrafo revela-se e encara-nos. Outros vão compreender: o fotógrafo revela-se hominídeo, isto é, autor-macaco, apenas parecido com um homem, e encara-se. Quem é o fotógrafo? Olhos nos olhos.